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Não sei quem sou, que alma tenho Exposição "Toda arte es una forma de literatura", no museu Reina Sofia |
Esse é o contexto da pergunta: escrever pra quem? Se é permitido escrever sozinho, isto é, escrever sem uma audiência, talvez devamos escrever para nós mesmos. E o pronome "nós" é o mais apropriado. Devemos escrever para os diferentes eus que nos habitam. O eu profundo e os outros eus. Escrever para eles e por eles, por assim dizer. Para lhes dar a via de expressão interditada pela nossa crença na unidade da nossa subjetividade e pelo princípio de realidade que mutila parte de que nós somos (ou podemos ser) em nome do normal e da normalidade. A imagem da mutilação pode produzir malentendidos: não é como se o que somos já existisse como um corpus mutilado pelas interdições impostas, é que nossa própria visão de nós mesmos se constrange pela lente da unidade do eu. A escrita ajuda a reabilitar a multiplicidade de perspectivas.
Se é verdade que as máscaras da civilização nos limitam e que só a presença dos amigos e das pessoas com quem nos sentimos à vontade nos liberta e potencializa as autênticas expressões da nossa subjetividade, a escrita talvez seja um recurso artificial para evitar uma fragmentação debilitante. Lembrando mais uma vez o velho Pessoa:
Para ser grande, sê inteiro: nadaIsso nos leva então à pergunta: escrever pra quê? Escrever para manter-se inteiro, mas também para não olvidar as partes preteridas pela necessidade de ajustar-se ao mundo, para manter presente o que deve ser esquecido, para trazer à tona o pensamento abismal que não queremos encarar:
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.
Ah, pensamento abismal que é meu pensamento! Quando acharei a força para ouvir-te cavar e não mais tremer? Até à garganta me vêm as batidas do coração, quando te ouço cavar! Mesmo teu silêncio me quer sufocar, ó abismal silencioso! Jamais ousei chamar-te para cima: era bastante que comigo — te carregasse! Ainda não era forte o bastante para a derradeira exuberância e petulância de leão. Já bastante terrível sempre me foi teu peso: mas um dia acharei ainda a força e a voz de leão que te chamem para cima! Quando eu me houver superado nisso, então me superarei também em algo maior. — Nietzsche, Assim falou ZaratustraA escrita tem também uma dimensão terapêutica, na falta de melhor expressão. A profusão de vozes e o fluxo constante não poucas vezes embaralham a trama dos pensamentos e enevoam o discernimento. É preciso deslindar os fios e escandir a trama de sorte a ter sempre presente uma visão perspícua de sua estrutura.
A medida que escrevia minha tese me dei conta, especialmente no final, que a complexidade de sua estrutura fazia com que frequentemente eu me esquecesse de alguma ideia importante das seções anteriores. Foi então que me ocorreu o imperativo de repetir, insistir e recuperar elementos para mantê-los presentes. Aspectos importantes da nossa subjetividade costumam rodar em background (como um daemon), represados e reprimidos, e é preciso um esforço deliberado não apenas para descobri-los, mas para mantê-los a tona. A escrita é parte de uma prática (um exercício, mas também uma ética) que acompanha a edição e a ruminação do já escrito, a revisão das ideias é como uma espécie de constante monólogo através do qual nos descobrimos e redescobrimos. Bem, (re)descobrir supõe uma essência já dada e talvez a escrita, como um ato, ao invés disso nos constitua. É como o esforço de construir — ou de talhar — uma memória atual, uma memória cujos elementos tenham sido deliberadamente escolhidos e constantemente mantidos presentes (atuais), como eixos e alicerces intencionalmente dispostos sobre uma estrutura.
Mesmo que não exija uma audiência, a escrita pública pode estar exposta ao mesmo tipo de constrangimento interno que a fala. A publicidade daquilo que não se ajusta é tão intimidante quanto um comentário sem sentido pronunciado em voz alta.
Se a escrita tem uma força constitutiva, tem também um poder desconstrutivo — e por isso seu caráter terapêutico. A capacidade terapêutica da escrita, me parece, está ligada à possibilidade de realinhar e redefinir os eixos dos sentido, de mudar pela atenção constante e deliberadamente dirigida a certos alvos as bases da nossa visão de mundo (do nosso sistema de crenças e convicções) e nossa atitude. Esses dois elementos estão intimamente ligados (atitudes e visões de mundo), por isso David Foster Walllace sugere o necessário exercício de fugir da nossa configuração padrão tentando notar algumas coisas e imaginar outras. Aliás, outra vantagem da escrita: ela também estimula nossa imaginação. Quanta coisa na vida não depende de imaginação.
A escrita é pura atividade, mas uma atividade livre: livre do imperativo do sentido imposto pela presença do outro (audiência), livre do imperativo produtivo exigido pelo propósito (ou expectativa) de produzir efeitos. A constância desse exercício e dessa liberdade tem efeitos imprevisíveis mas, creio, transformadores.
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Inscrição na frente de uma livraria na Escadinhas de São Cristovão, em Lisboa. |
PPS. Às vezes eu tenho impressão de que estou insistindo demais numa ideia ou num texto. Insistindo não, repetindo. Até que eu me disponha a checar se é verdade, essa ideia é só uma impressão. A impressão da vez é que estou repetindo demais a referência ao A liberdade de ver os outros, de David Foster Wallace. Não vou checar essa impressão, mas se ela for verdadeira, tanto melhor.
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